Foto: Samuel Oliveira

Bike como transporte em Sampa: um guia sincero.

Yasodara Cordova

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Já tem um tempo, depois de colocar no papel um cálculo simples, decidi ir de bike pro trabalho. Para uma pessoa que mora na maior cidade da América Latina, não é uma decisão tão simples, visto que logística não é uma coisa fácil, mas como o lema aqui é “Non ducor, duco”, vamos aos fatos.

Pelos meus cálculos:

  • de carro: 40 min, 700 reais mensais (estacionamento + gasolina, exluindo manutenção e impostos)
  • de busão: quase uma hora e meia. A volta não é tão grande, mas a rota do busão é uma das coisas mais mal planejadas já vistas na face da terra. A coisa vai e vem, naquele balançar cinza, fedido e barulhento — e não chega nunca, passando às vezes pelo mesmo ponto, na mesma rota (não estou falando de ida e volta, amigos do meu Brasil varonil)
  • de trem + a pé: 15 minutos de caminhada + ida e volta de trem. Ao todo, uns 50 minutos, em dia bom. Esse item merece atenção especial porque as pessoas acham o trem a coisa mais linda do mundo… quando não andam de trem. Aquilo é lotado, mas ok, até aí aguentamos. Mas daí dá um chuvisquinho e pimba: você fica 40 minutos trancado dentro daquela coisa estufa, nem vai nem vem, e o aviso que pisca dizendo que vandalismo é crime chega a ser ostensivamente irritante. Daí você coloca os cotovelos na frente pra sair, porque está basicamente 40 minutos atrasada e te jogam pra fora do trem, como se você fosse uma coisa a ser cospida de uma garganta regurgitante. É, trem em SP é legal sem chuva e fora dos horários de pico. De resto, apenas tente e me diga depois. Isso que não falei em baldeação.
  • de bike: meia hora pra ir, meia hora pra voltar. A manutenção da bike vai dar aí uns 200 reais a cada seis meses. Economiza 400 de academia, que também entram no rolo, é claro.

Essa parte é importante porque o motivo pelo qual você escolhe se transportar de bike é a coisa mais importante do processo todo. Se o motivo não for forte o suficiente, você desiste no primeiro dia — e deveria desistir mesmo! — e vou dizer porque.

1. São Paulo não tem asfalto,

tem uma capa de areia preta colada com um asfalto malemal, ou então paralelepípedos. O primeiro obstáculo é o chão: essa coisa LYNDA que nos acolhe a cada tombo é também o que vai determinar a escolha da sua bicicleta, porque camaradas, se você é iniciante, numa speed você não vai muito longe. Pelo menos não na zona Sul. Ah! Não tem ciclovias onde eu moro — ou ciclofaixa, que seja. Aqui é o faroeste mesmo então te vira na areia preta. Por causa disso, se você quiser ir de bike pro trabalho, previna-se arrumando uma montain bike. Nunca achei que minha vida adulta ia beber no conhecimento da prática de down hill, entre outras gracinhas adolescentes, mas acho que me preparei todos aqueles anos para ir e voltar do trabalho de bike em SP. Me perdoem os ciclistas de domingo da paulista, mas um belo amortecedor é fundamental. Não dá pra se enfiar no meio dos carros pra desviar do bueiro rebaixado às 17:30 na funchal sem esperar ter uma ou as duas pernas amassadas. Você também não vai querer ficar esperando o busão partir na frente do cano de descarga do diesel mais poluente ainda em uso em um país, não é? Então. A-gi-li-da-de. Sem que você possa se comportar como quem foge da polícia numa perseguição de hollywood, nem rola.

Ah essas ruas tão bem cuidadas, prontas pra gente praticar o Mountain Bike Urbano, modalidade famosa na cidade de SP.

2. São Paulo não tem motoristas,

tem loucos. De três tipos: o primeiro é o sujeito(a) que vai buscar o filho na escola depois de um dia inteiro sem bater metas na Berrini. Essa pessoa vai jogar o carro pra cima de você pra ganhar cinco minutos à frente da mãe do coleguinha na porta da escola porque ela simplesmente não aguenta mais o dia. Precisa pegar as quianssa, dar comida, banho e botar logo pra dormir pra poder ver o jogo antes que alguém chegue e mude pra novela. Essa pessoa é um poço instável de jargões e precisa descarregar, seja no porteiro da escola, em você ou no motoqueiro. Qualquer um que cruzar o caminho do primeiro tipo é um alvo em potencial.

O segundo tipo é a pessoa que não sai da porra do celular. A merda é que a pessoa depois vai ficar arrependida, fazendo terapia pro resto da vida se perguntando porque não estava dirigindo ao invés de falar ao celular, mas a sua vida não volta mesmo sendo Froid o psicólogo do atropelador. Logo, essa anta é perigosa e não deveria dirigir.

O terceiro tipo é o cara que não quer amassar o carro, então ele vê que vai encostar no busão e prefere jogar o carro em cima do ciclista porque o dano é menor. Simples assim. Não é má pessoa, mas se em um semáforo ele te vê chegando no retrovisor e o risco de você passar por ele e cair, estragando a lataria, é grande, ele te fecha. Porque convenhamos: ele trabalhou muito pra comprar aquela lata com ar condicionado e não é um ciclista que vai riscar seu precioso bem material.

Previna-se contra esses tipos com: ATENÇÃO. Verifique se os louco te viram. Faça CONTATO VISUAL. Balance a cabeça, fale obrigada (alto, de preferência faça um tchauzinho ou legalzinho quando ele te enxergar). Tenha uma CONFIRMAÇÃO de que o louco tem consciência, ainda que breve, de que você é uma pessoa, não um inimigo. Se ele não der sinal de que entendeu isso, não avance nem chegue perto. Lembre-se que ele está de carro e que o sinal vai fechar. É nessa hora que você passa e ele fica (kilômetros, geralmente) pra trás.

3. São Paulo tem muitos cruzamentos,

o que ajuda na paisagem, mas aqui não tem espelhos pra que os participantes do trânsito vejam quem está vindo. Alô prefeitura! Basta colocar uns espelhos nas quinas para que os motoristas vejam quem está vindo e de onde. Tenho certeza que não é caro e ia ajudar muito. Mas, enquanto não tem a gente se vira se prevenindo com o seguinte ato: diminua a velocidade nos cruzamentos. Ciclista bom é ciclista que chega vivo onde tem que chegar. Se motorista não para em cruzamento, pare você. Não adianta achar que você vai virar o the flash porque não está poluindo. Não vai. Diminua a velocidade, pare, espera o sinal fechar (quando tiver) e se não tiver olhe pros dois lados e só quando não vier ninguém, atravesse. Pois é: a vida não é perfeita.

O olho que tudo vê.

4. São Paulo não tem parada de ônibus,

tem pauzinho azul fincado no chão. No meio da via. O ônibus freia, subitamente, e você está ali, no cantinho, pronto pra dar de cara com aquela traseira com o comercial da AMIL. Então, filhote, precisa da mountain bike, precisa da sapatilha presa no pedal. Tem vários modelos e vale a pena investir, porque quando você tiver que saltar pro meio-fio é maior a probabilidade de você levar junto a bicicleta.

Essa belezura vai deixar sua perna presa ao pedal, mas você vai conseguir tirar quando quiser só mexendo de ladinho. Invenção do século.

5. São Paulo não tem calçadas,

mas o povo anda naquilo assim mesmo, já que não tem por onde ir. Você vai precisar das calçadas também, então tenha uma bike com bons freios, já que atropelar pedestres também não é legal. Mais uma vez, dê uma treinadinha em como desviar de múltiplos obstáculos em tempo e espaço limitados. Pessoas passeando e você ainda tem os buracos das calçadas, as falhas, garagens, poças d'água e outros atrativos que fazem de uma ida ao trabalho de bike uma aventura urbana. A solução pra evitar desgaste nas calçadas desgastadas é: freios bons e atenção redobrada. Mais uma vez, olhos nos olhos dos pedestres e tenha certeza que você foi notado. Abaixe a velocidade pra não atropelar crianças. Vá na manha. Não tem outro jeito, calçada é feita pra andar, mas remendo é com a gente mesmo.

6. São Paulo não tem sinalização,

tem entradas e saídas sem aviso, direitas que dobram à esquerda e outras cositas más. E daí é aquilo: os motoristas param onde querem. Tudo é desculpa pra dar aquela encostadinha pra ir à farmácia rapidinho ninguém-vai-notar. Você está lá, nos seus 40km/h, e o belezura ENCOSTA DE REPENTE, você no chão com as pernas quebradas, ele com aquela cara de "o ciclista não parou". E aí é transtorno e dor. Então, mais uma vez a solução aqui é: atenção tripla. Preste atenção nas setas, na cara do motorista. Nada de fones de ouvido. Olhe pra trás, e pelamordedeus, sinalize você, na falta de sinalização. Sempre. Não é ridículo.

Vamos falar do que São Paulo TEM agora, pra não me xingarem de reclamona. Pois bem:

7. São Paulo tem

carros estacionados na rua. Um monte deles. Em qualquer rua. E depois galera fala mal das ciclofaixas que ocupam uma faixa e mimimi…

Realmente, as ciclofaixas é que atrapalham. (repare no maravilhoso asfalto)

Pelamor. Carro estacionado NOS DOIS LADOS DA VIA e você tem que passar pelo meio, ou pela calçada, ou vá voando porque nem tem calçada às vezes. E aí você precisa ser astuto, prestar atenção no barulho atrás de você, tentar prever se vem carro depois da curva, cuidado com portas que se abrem (estão estacionados, lembra?) e com gente que sai ou entra abruptamente nos carros.

As pessoas estão sempre muito ocupadas aqui então é provável que não te vejam. Se adiantasse alguma coisa eu desejaria que todos os carros em fila de estacionamento proibido fossem guinchados. Mas no outro dia ia ter outros carros lá, então, prefiro desejar coisas mais elegantes.

8. São Paulo tem

lei que obriga a ter bicicletário, mas na real ninguém poe em prática. Quando poe, é só pros "babáikers" não incomodarem mais. Ainda que, na melhor das intenções, tenha o santo estacionamento de bicicletas, as pessoas não entendem porque você tem que prender "aquela porcaria". E pelo quadro, e prender as rodas também. Nessa leva, também não tem um lugar na garagem pra você se arrumar, porque claro, nem santo anda de Bike de salto. Só pra posar pra foto, na ciclovia da paulista em dia de domingo. E olhe lá.

Olá, esse é o seu bicicletário. Quer ajuda pra levantar a bike e prender ao mesmo tempo ou você tem oito mãos?

Esse item não tem solução. A cultura da bike ainda precisa entrar na cabeça dos paulistanos então o jeito é ter paciência e explicar porque não vai deixar sua bike encostada no poste da frente do prédio. Explicar, explicar, explicar. Mostrar que tem lei, que tem regulamentação da lei, que tem formatação internacional e é chique. Fale uma palavra em francês ou italiano no meio da discussão que ajuda.

Voltemos ao que são paulo não tem, gente. Não deu. Desculpem ter nascido.

9. São Paulo não tem

abundância de acessórios à venda, coisa de qualidade, a preços justos. Num outro post que eu fiz falei dos benefícios que uma indústria de ponta puxada pelo ciclismo urbano poderia trazer pro país. Andar de bicicleta é um negócio bacana, e você vai querer que fique melhor a cada vez. Um medidor de velocidade aqui, um capacete melhor ali, umas meias dry-fit, uma chavezinha pra levar junto… Só que no Brasil não fabricam essas coisinhas. Algumas, mas é tudo chinês. Aliás, os chineses são melhores do que os brasileiros nessa visão de oportunidade de negócios. A gente poderia estar vendendo, exportando, gerando receita internamente, etcetera. Mas estamos discutindo se São Paulo cabe ciclofaixa ou não. JEIT! E também não tem muita solução aqui. O jeito é arrumar alguém que entende de lojas da Internet e se virex. Ou então vá a uma loja descolada e pague quatro vezes o preço. Ou espera a promoção, sei lá.

No geral, essas são as principais dicas que eu queria dar sobre ir ao trabalho de bike pra quem não mora na parte gourmet da cidade. Talvez funcionem na parte gourmet também, vai saber. A boa nova é que ir e voltar de bike tem vinte mil vantagens, mas só pra dizer algumas:

  • muito mais disposição pra tudo. Depois de ir, voltar, o corpo se acostuma com a serotonina e você fica numa boa.
  • a adrenalina é garantida.
  • Você conhece melhor as quebradas. Caminhos alternativos, etc.
  • Sagacidade. Como você tem que estar atento a tudo o tempo todo, acaba ficando mais ligeira, tanto mentalmente quando fisicamente. Desculpaê.
  • Você entende melhor a cidade, as pessoas. Ao invés de se sentir visitando um zoológico, você se sente morando em um.

Andar de bicicleta também é uma maneira de pressionar a cidade pra que ela fique melhor. Como eu mencionei, só de melhorar sinalização, condições das ruas e calçadas, espelhinho na esquina e bicicletário em garagens, a cidade já ficaria melhor pra todo mundo, entre carros, pedestres e quem mais quiser aproveitar a cidade. Ciclovias também seriam a coisa mais bem vinda do mundo na Berrini e arredores, entre outros locais, porque eu tenho certeza que mais gente se arriscaria a ir pro trabalho de bicicleta. Não tem lugar pra todo mundo no trem, não tem no ônibus. A gente vive numa cidade que está sempre no limite da lotação e, certeza, se muita gente deixar o carro de uma hora pra outra e for andar de metrô e trem, a coisa vai feder. E muito. Não tem espaço, não tem carros nessa coisa superfaturada que é o nosso querido sistema de transporte urbano. São Paulo precisa de alternativas inteligentes, e a bike, apesar de ser uma solução antiga, é de todas a mais palpável e poética.

Ah uma coisa importante: no final do dia é bom dar aquela agradecida. Seja Alá, Josué, Jesus, Buda, Cristo, InriCristo, Zeus, Deus ou qualquer outro, andar pelas ruas de SP de bike é daquelas coisas que te faz acreditar que você só se salvou por milagre. É perigoso, mas também tem lá suas vantagens :-)

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Yasodara Cordova

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